Há alguns
anos, que já vai longe e não lembro exatamente quando, o amigo querido Cícero
Militão, trabalhando na Emater de Ceará-Mirim, em suas andanças, localizou Dona
Apolonia na comunidade de Matas, aqui em Ceará-Mirim. Sabendo de meu interesse
pela cultura popular, o querido macaibense raiz, logo me relatou sobre a importância
da Romanceira, que era irmã da famosa Romanceira Dona Militana, do Oiteiro, em
São Gonçalo do Amarante. Já conhecia Dona Militana através de alguns encontros
culturais com os amigos Gláucio Pedro Breu, de São Gonçalo do Amarante e o
querido irmão Conde Mucio Vicente, que me apresentou ao universo cultural são-gonçalense,
e, por último, muito tempo depois desses encontros, a querida, inesquecível e saudosa amiga Sephora Bezerra,
ícone da cultura de São Gonçalo e amiga de muitas viagens e companhias junto ao
Pastoril Dona Joaquina e ao, inoxidável e maravilhoso palhaço Xapuleta, o
também querido amigo, Aléx Ivanovic. Tivemos momentos que nunca irei esquecer.
Quando
o amigo Cícero Militão me falou sobre Dona Apolônia, imediatamente, procurei
saber onde a mestra morava através do querido amigo de muitas viagens culturais,
Mestre Luis Chico do Boi de Reis de Matas. O mestre providenciou nosso encontro
e pela primeira vez tive a felicidade de conhecer Dona Apolônia, mulher
simples, com aquele jeitinho tímido, se escondendo atrás de sua figura humilde,
introspectiva, ela não tinha ideia da importância de sua sabedoria para a
cultura popular do Rio Grande do Norte e do Brasil. A partir daquele dia, tive
alguns encontros com a mestra, muitos deles, com alunos das escolas onde
trabalhava, procurava torna-la conhecida pela sua importância na preservação de
nossas tradições populares e de nossas memórias, tão esquecidas e discriminadas
pelas novas gerações, principalmente onde os grandes mestres de cultura popular
vivem, sem que sejam reconhecidos pelo que eles representam para a cultura e
história de seu lugar.
A
mestra Apolônia se encantou no dia 04 de fevereiro de 2023. Eu estava em
Caruaru/PE, comemorava, com minha companheira, os 31 anos de casamento, uma
vida vivida, enquanto outra, tão significativa, se encantava. É o destino! É o
caminho que teremos que percorrer, queiramos ou não, é nossa maior certeza. A
mestra se encantara, mas, estávamos aqui, para, pela memória, tentar
preservá-la viva em suas rezas, em seus romances, e, pelo seu encantamento, em
suas “incelências”, para que seu caminho, para o outro lado, seja eterno e acompanhado
pelo senhor São Benedito e São Miguel Arcanjo, em suas 12 “incelências”: “Uma incelência pro senhor São Benedito, ele
chorava, ele dizia, ele se lastimava e as estrelas clareava! ou a incelencia de
São Miguel Arcanjo: Oh! alma bendita por quem estás esperando, por uma
incelencia que está se rezando. Os anjos cantando, os sinos tocando e São
Miguel Arcanjo as almas pesando.
A
mestra Apolônia Salustino do Nascimento nasceu no dia 15 de setembro de 1931,
no lugar conhecido por Oiteiro em São Gonçalo do Amarante. Seus pais eram Atanásio
Salustino do Nascimento e Maria Militana
do Nascimento. Quando criança ela ajudava os pais na roça e na coleta de palhas
de carnaúba para a confecção de artesanato. Seus pais eram agricultores e
Atanásio Salustino foi mestre em folguedos populares, brincante de Congos,
Fandangos, Boi de Reis, Pastoril, Lapinha, Coco de Rodas e gostava também de cantoria
através de romances medievais, introduzidos no Brasil pelos colonizadores. Foi
nesse ambiente que a Mestra Apolônia aprendeu e lapidou sua sabedoria, era
excelente rezadeira e cantava, de memória, os romances e “incelências”, que
ouvia nas cantorias de seu Atanásio e na casa de uma tia onde assistia muitas
noites de cantoria. Escutava com muita atenção "Dom Jorge eu ouvi dizer que tu tavas pra casar. É verdade,
Juliana, eu vim te desenganar. Esperai, Rei Dom Jorge, que eu vou lá no meu
reinado, vou ver um copo de vinho que eu pra ti tenho guardado". Ela
não sabia, mas as canções que ouvia de seu pai e guardava na memória eram
romances ibéricos, histórias de conquistas que eram contadas e cantadas na era
medieval. Herança trazida para o Brasil nas caravelas pelos colonizadores
europeus.
Em
1952, quando coletava palha de carnaúba conheceu e enamorou-se por Chico Tomaz,
um amigo da família que estava viúvo e o mesmo se apaixonou à primeira vista
resolvendo pedi-la em casamento. Para surpresa dos familiares, mesmo sendo
pedida em casamento, Apolônia não aceitou, mas fugiu com o namorado Chico Tomaz
que era de Taipú. O casal foi morar em Extremos onde o companheiro trabalhava
em uma fazenda. Alguns anos depois, a fazenda foi vendida, e o casal mudou-se
para a comunidade de Matas, em Ceará-Mirim, no ano de 1966. Do relacionamento
com Chico Tomaz nasceram 14 filhos.
A
mestra Apolônia proporcionou muitas alegrias quando visitava sua casa e,
embaixo de uma enorme mangueira, proseávamos e ela cantava alguns romances e “incelencias”
que ia garimpar no mais profundo recanto de sua memória. Daqueles encontros,
muitos registrados em vídeos e fotografias, tivemos a oportunidade de
registrá-la no livro “Ceará-Mirim conhecer para preservar” produzido por alunos
da Escola Estadual Otto de Brito Guerra e publicado através de nosso projeto
pelo Mais cultura nas escolas.
Meu
último encontro com Dona Apolônia foi em dezembro de 2021 quando fui à comunidade
para presenteá-la com uma camisa de Nossa Senhora da Conceição de quem era
devota. Ficará na minha memória todos os momentos que pudemos estar juntos,
ouvindo suas canções, os romances, as “incelencias” e as rezas. Quando sentir
saudade, recorrerei as gravações que fizemos, mas, o som de sua voz, o seu
jeitinho de falar, ficarão registrados em minha lembrança!!
Nossos
mestres de cultura popular estão desaparecendo sem deixar substitutos. Muitos
se encantaram, entre eles, Mestre Déo, Mestre Tião Oleiro, Mestre Zé Baracho,
Mestre Belchior, Mestre Luiz de Julia e tantos outros heróis que por muito
tempo lutaram para manter seus brinquedos vivos. Atualmente restam poucos desta
rara linhagem cultural, como mestre Luiz Chico, mestra Maria do Carmo, mestre
Zé Rodrigues, todos acima de oitenta anos e mestre Severino Roberto, mais novo
que os anteriores, mas que continua com o grupo Cabocolinhos lutando e
resistindo a todas as dificuldades.