sábado, 11 de fevereiro de 2023

À AMIGA QUE PARTIU - MESTRA APOLÔNIA SALUSTINO DO NASCIMENTO


Há alguns anos, que já vai longe e não lembro exatamente quando, o amigo querido Cícero Militão, trabalhando na Emater de Ceará-Mirim, em suas andanças, localizou Dona Apolonia na comunidade de Matas, aqui em Ceará-Mirim. Sabendo de meu interesse pela cultura popular, o querido macaibense raiz, logo me relatou sobre a importância da Romanceira, que era irmã da famosa Romanceira Dona Militana, do Oiteiro, em São Gonçalo do Amarante. Já conhecia Dona Militana através de alguns encontros culturais com os amigos Gláucio Pedro Breu, de São Gonçalo do Amarante e o querido irmão Conde Mucio Vicente, que me apresentou ao universo cultural são-gonçalense, e, por último, muito tempo depois desses encontros, a querida,  inesquecível e saudosa amiga Sephora Bezerra, ícone da cultura de São Gonçalo e amiga de muitas viagens e companhias junto ao Pastoril Dona Joaquina e ao, inoxidável e maravilhoso palhaço Xapuleta, o também querido amigo, Aléx Ivanovic. Tivemos momentos que nunca irei esquecer.

Quando o amigo Cícero Militão me falou sobre Dona Apolônia, imediatamente, procurei saber onde a mestra morava através do querido amigo de muitas viagens culturais, Mestre Luis Chico do Boi de Reis de Matas. O mestre providenciou nosso encontro e pela primeira vez tive a felicidade de conhecer Dona Apolônia, mulher simples, com aquele jeitinho tímido, se escondendo atrás de sua figura humilde, introspectiva, ela não tinha ideia da importância de sua sabedoria para a cultura popular do Rio Grande do Norte e do Brasil. A partir daquele dia, tive alguns encontros com a mestra, muitos deles, com alunos das escolas onde trabalhava, procurava torna-la conhecida pela sua importância na preservação de nossas tradições populares e de nossas memórias, tão esquecidas e discriminadas pelas novas gerações, principalmente onde os grandes mestres de cultura popular vivem, sem que sejam reconhecidos pelo que eles representam para a cultura e história de seu lugar.

A mestra Apolônia se encantou no dia 04 de fevereiro de 2023. Eu estava em Caruaru/PE, comemorava, com minha companheira, os 31 anos de casamento, uma vida vivida, enquanto outra, tão significativa, se encantava. É o destino! É o caminho que teremos que percorrer, queiramos ou não, é nossa maior certeza. A mestra se encantara, mas, estávamos aqui, para, pela memória, tentar preservá-la viva em suas rezas, em seus romances, e, pelo seu encantamento, em suas “incelências”, para que seu caminho, para o outro lado, seja eterno e acompanhado pelo senhor São Benedito e São Miguel Arcanjo, em suas 12 “incelências”: “Uma incelência pro senhor São Benedito, ele chorava, ele dizia, ele se lastimava e as estrelas clareava! ou a incelencia de São Miguel Arcanjo: Oh! alma bendita por quem estás esperando, por uma incelencia que está se rezando. Os anjos cantando, os sinos tocando e São Miguel Arcanjo as almas pesando.

A mestra Apolônia Salustino do Nascimento nasceu no dia 15 de setembro de 1931, no lugar conhecido por Oiteiro em São Gonçalo do Amarante. Seus pais eram Atanásio Salustino do Nascimento e Maria  Militana do Nascimento. Quando criança ela ajudava os pais na roça e na coleta de palhas de carnaúba para a confecção de artesanato. Seus pais eram agricultores e Atanásio Salustino foi mestre em folguedos populares, brincante de Congos, Fandangos, Boi de Reis, Pastoril, Lapinha, Coco de Rodas e gostava também de cantoria através de romances medievais, introduzidos no Brasil pelos colonizadores. Foi nesse ambiente que a Mestra Apolônia aprendeu e lapidou sua sabedoria, era excelente rezadeira e cantava, de memória, os romances e “incelências”, que ouvia nas cantorias de seu Atanásio e na casa de uma tia onde assistia muitas noites de cantoria. Escutava com muita atenção "Dom Jorge eu ouvi dizer que tu tavas pra casar. É verdade, Juliana, eu vim te desenganar. Esperai, Rei Dom Jorge, que eu vou lá no meu reinado, vou ver um copo de vinho que eu pra ti tenho guardado". Ela não sabia, mas as canções que ouvia de seu pai e guardava na memória eram romances ibéricos, histórias de conquistas que eram contadas e cantadas na era medieval. Herança trazida para o Brasil nas caravelas pelos colonizadores europeus.

Em 1952, quando coletava palha de carnaúba conheceu e enamorou-se por Chico Tomaz, um amigo da família que estava viúvo e o mesmo se apaixonou à primeira vista resolvendo pedi-la em casamento. Para surpresa dos familiares, mesmo sendo pedida em casamento, Apolônia não aceitou, mas fugiu com o namorado Chico Tomaz que era de Taipú. O casal foi morar em Extremos onde o companheiro trabalhava em uma fazenda. Alguns anos depois, a fazenda foi vendida, e o casal mudou-se para a comunidade de Matas, em Ceará-Mirim, no ano de 1966. Do relacionamento com Chico Tomaz nasceram 14 filhos.

A mestra Apolônia proporcionou muitas alegrias quando visitava sua casa e, embaixo de uma enorme mangueira, proseávamos e ela cantava alguns romances e “incelencias” que ia garimpar no mais profundo recanto de sua memória. Daqueles encontros, muitos registrados em vídeos e fotografias, tivemos a oportunidade de registrá-la no livro “Ceará-Mirim conhecer para preservar” produzido por alunos da Escola Estadual Otto de Brito Guerra e publicado através de nosso projeto pelo Mais cultura nas escolas.

Meu último encontro com Dona Apolônia foi em dezembro de 2021 quando fui à comunidade para presenteá-la com uma camisa de Nossa Senhora da Conceição de quem era devota. Ficará na minha memória todos os momentos que pudemos estar juntos, ouvindo suas canções, os romances, as “incelencias” e as rezas. Quando sentir saudade, recorrerei as gravações que fizemos, mas, o som de sua voz, o seu jeitinho de falar, ficarão registrados em minha lembrança!!

Nossos mestres de cultura popular estão desaparecendo sem deixar substitutos. Muitos se encantaram, entre eles, Mestre Déo, Mestre Tião Oleiro, Mestre Zé Baracho, Mestre Belchior, Mestre Luiz de Julia e tantos outros heróis que por muito tempo lutaram para manter seus brinquedos vivos. Atualmente restam poucos desta rara linhagem cultural, como mestre Luiz Chico, mestra Maria do Carmo, mestre Zé Rodrigues, todos acima de oitenta anos e mestre Severino Roberto, mais novo que os anteriores, mas que continua com o grupo Cabocolinhos lutando e resistindo a todas as dificuldades.