sexta-feira, 8 de abril de 2011

ESTÓRIA DE OITIVA DA FEIRA DO CEARÁ-MIRIM



ESTÓRIA DE OITIVA DA FEIRA DO CEARÁ-MIRIM

Bartolomeu Correia de Melo


“Diz-que sucedeu nos meados dos oitocentos...” Assim começava meu avô, Joca Correia, recontando antigas estórias de paz e fartura, ouvidas quando inda menino, nos serões de debulha na Várzea de Dentro. Se bem que, no aqui-acolá da narração, tais singelos contares algum pouco destoassem dos livros de agora, nunca chegariam à desfeita de desmentir a sisudez da história. E assim como os antigos aconteceres do lugar sempre entretinham nossa gente, decerto que hoje agradariam a ilustres visitantes. “Boca da Mata era o nome da briosa vila, de poucas ruas banguelas e casario desigual. Naquele tempo, ainda não passava o trem; passava um rio salobro, correndo entre as carnaúbas, chamado Ceará-Mirim. De começo, aquele par de ruas em cruz, marcando dois caminhos; um do mar e outro do sertão. A via mais estreita - depois batizada São José - subia a beira do vale, em busca da Jacoca; a mais larga, se espraiava no rumo do sol, à direita do rio. Essa dita Rua Grande tinha mais casas do lado de riba, olhando pro verdume das matas que ainda tomavam quase todo vale. Se bem que, no ali-acolá do horizonte, já subiam pardas baforadas, marcando os primeiros engenhos de almanjarra. Carnaubal, Ilha Bela, Porão do Norte, Capela...

Ruínas do engenho Carnaúbal


Mode aumento das almas, pela chegança doutros engenhos, diz-que feirinha acanhada brotou daquela encruzilhada. Isso, debaixo dum pé-de-pau frondoso, quase defronte à bodega dum tal Chico Bernardo. No cedinho dos domingos, depois das rezas no oratório de Sant’Águeda, se botavam naquela sombra alguns taboleiros de engodos e baganas, como doces-secos, roletes-de-cana, alfenins, farinhas-de-castanha... E fativo que também umas poucas bancas de miudezas, coisas de mimo e devoção; medalhas e rosários, velas e fogos de papoco, pra louvar a santa. Com pouco, seu Chico estendia na calçada a mangalheira sortida; de anzol a chocalho, de espoleta a corrimboque, de quicé a ponta-de-linha... Chegavam outros com teréns de palha ou de barro; chapéus e urupemas, botijas e alguidares. Daí apareceram méis-de-abelha, raízes e cascas de chá, azeites de bati e dendê, bajens de ingá e baunilha, passarinhos de cores e de cantos – pois que a mata era rica e generosa. Carnes e couros de caça e criação, peixes frescos, secos e salpresos, trazidos por caboclos praieiros e matutos pras gentes do arruado. E tanto aumentaram as mercancias que findou carecendo estender latada de palha e bambu, pro melhor abrigo de quantas vendagens e vendedores.

Bem faria gosto voltar no tempo e apreciar aquilo tudo. Pois que apontavam cristãos de quantos lados; de Gravatá, Massangana, Itapassaroca e doutras bandas mais diversas e distantes. Montados ou apeados, de charrete ou carro-de-boi, conforme as devidas posses e importâncias. Tirante escravos, crias-de-casa e outros sem-eito-nem-eira, quase todos moradores remediados da vila eram donos dalgum chão de pomar ou roçado. Daí que, na feira desse tempo, por costume de fartura, frutas e verduras quase não se viam; pois que se davam, não se vendiam. E todo-mundo mantinha, nos terreiros e quintais, galinheiros e banquetas de temperos-verdes. Nas cozinhas, pequenos fabricos de velas, sabões, águas-de-cheiro, licores e lambedores, somente pro gasto de casa.


Na feira, pouco se compravam luxos; somente comeres de passadio, misturas sem muitas finuras e aquelas coisinhas de usança e precisão do todo-dia. Moradores e rendeiros vinham comerciar grãos e farinhas (sobras das safras de meia ou terça); além disso, mel-de-furo, açúcar-bruto, aguardente ou rapadura (havidos como pagas das tarefas de eito). Havia ainda os escravos-de-ganho, fazendo biscates de balaiagem ou apregoando a vintém coisinhas de taboleiro. A modo que, quase todos, da rua ou do mato, sempre tinham bens de extração ou fabrico, produtos de plantio ou criação, pra trocar, em moeda ou escambo, por artigos que não podiam ou não sabiam fazer. Apetrechos como fósforos e pólvora, breu e querosene, arreios e ferramentas, botões e colchetes e quaisquer versidades de avios e atavios de gringa feitura.


Inauguração das torres da igreja - 01 de janeiro de 1900


A feira crescia e a vila, mudada em cidade com nome do rio, crescia com ela. A antiga mata se afogando nas ondas dum mar de canas, donde brotavam riquezas e fidalgos; passadas grandezas e presentes nostalgias. Poesia semeada nos nomes dos engenhos - Paraíso, Belo Monte, Verde Nasce, Boa Vista, Primavera... Ergueu-se a matriz e, com ordem e progresso, retirantes se enraizavam, ruas se esgalhavam e a feira florescia todo sábado e domingo.


Houve uma data incerta, mais dita como ano-da-cheia-grande, assim lembrado pelo rol dos desmantelos, quando o rio esborrotou lambendo a feira. Consta que, já nesse então, outros empalhos e pendengas pediam a mudança de lugar. Pois, já bem posta em maior das redondezas, aumentara tomando toda rua e invadira – com sujeiras, malcheiros e xingações - as nobres calçadas dalguns maiorais do lugar. Além do que, por ordens de asseio, carecia melhor resguardo pras carnes e outras comidas tementes a podrura ou azedume.

Nesse quando, ao que parece, por falta de acertos ou recursos, os feirantes e vendeiros demoravam nas carecidas melhorias. Até que um rico-homem, coronel Onofre Soares, se dispôs a construir espaçoso e bem fornido prédio de mercado, entregue no ano de oitocentos e oitenta e um. O lugar escolhido, mais arriba da nascente Rua d’Aurora, ficava perto donde foi erguido o sobrado dos Antunes. Aceiros do povoado, pois que, fazia pouco, acolá fora chão bruto de roça, quase beirando o capão do Cipó, sobejo de mata, do lado sueste. Por vintena d’anos, como contrapartida, o benfeitor gozou usufruto de taxas e alugueres.


Mercado Público de Ceará-Mirim


Debaixo desse bom abrigo ficavam pedras de açougue e peixaria, fardos de charques e avoadores, pontos de leite e queijo, locais de grãos e farinhas, além de bancas de vendagens e merendas. No derredor da larga quadra, logo se abriram mercearias, armazéns de açúcar, lojas de panos e casas doutros negócios. Daí, no grande vão restante, se arrumou, mais limpa e adequada, a nova e esperada feira.


Tempos decorridos, no abrir dos novecentos, chegava ajuda do trem, trazendo moendas e caldeiras modernosas e levando açúcar refinado das usinas. E aqui me esbarro, pois quase que enveredo noutra estória.” Mais de século depois, bem conservado em feição e tradição, o antigo mercado abre portões e corações nas noites de quinta-feira. Pra quem quiser trocar alegria por arte, diversão por cultura ou fazer algum negócio prazeroso, como ganhar amizades e gastar conversa, apreciando a cachaça e as estórias do lugar.



Publicado no livro Ceará-Mirim Tradição, engenho e arte. UFRN/SEBRAE/Prefeitura de Ceará-Mirim - 2005.

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