O texto "Como preparar uma armadilha para pássaros e caçadores" é de Pedro Simões. As fotografias são de minha autoria, fruto de algumas andanças. Espero que as ilustrações agradem aos leitores e amantes da natureza.
Primeiro você desfia as palhas do coqueiro para fazer os palitos. Depois, você os aplaina com uma faca bem afiada e vai buscar uma madeira porosa e leve. Então, faça uma armação com a madeira - a estrutura da caixa e do alçapão - e vá enfiando os palitos de coqueiro formando uma espécie de cerca. Entre a caixa e a tampa, ponha uma pequena dobradiça, ou amarre com barbante a parte móvel – a tampa da caixa. Ponha uma isca: pedacinhos de pão, alpiste, fubá de milho...e misture com um pouco de azul – o engodo do céu. E leve o seu artefato para o meio do mato, se possível, à beira de um regato. Arme-o e fique à espreita entre os arbustos. Pode demorar um pouco. A paciência o recompensará. Afinal você é um caçador. Enquanto espera, o caçador de pássaros olha ao seu redor e lentamente vai absorvendo a paisagem. Registra o verde, que se camaleoa em uma infinidade de tons, desmaiando bem pertinho do amarelo e quase morrendo próximo do marrom. Percebe o som do vento agitando a folhagem e o reconhece como transporte de uma multiplicidade de aromas que o embriagam, e o nauseiam – desde o adocicado e o propriamente dito vegetal, até a matéria em decomposição. Distingue minúsculos, graúdos, lentos e apressados habitantes da mata pelo ciciado das folhas secas que os denuncia. Observa que as flores silvestres são espécies de caboclas interioranas sem maquiagem, beleza simples, natural, despretensiosa e, todavia, cheia de graça. Percebe uma sugestão, apenas uma sugestão de perfume, a um só tempo sutil e delicado como o vôo das borboletas e a plumagem das aves solta no ar. É um “cheiro da imagem”, como diz muito bem o poeta Manoel de Barros. Uma nesga de azul com esfumados brancos o atinge nos olhos quando descobre o céu. Imagina, mais do que vê, uns raios amarelos, filigranas douradas penetrando a mata rala. E um insólito girassol bebendo um que outro raio como fosse um absinto, um licor, um conhaque que o inebria, levando-o para o interior da tela de Van Gogh, onde delira. Um riacho serpenteia e murmura sobre um leito pedregoso. Um arrulho (ou o sibilar de uma cobra?). Pela primeira vez observou que as águas que vão passando, trazidas pela corrente, jamais tornarão. Então é preciso fixá-las na memória. Nem imagina a dificuldade em separá-las para distingui-las. Então, com a imagem da última corrente homenageia as que se seguirão. Longe, um cavalo relincha e menos longe, ouve um aboio e os chocalhos de algumas reses à beira do descaminho. É quando um passarinho descuidado pousa ao seu lado e começa a ciscar o chão, ignorando a sua presença. Estava ao alcance da mão e não é possível que não o tivesse visto, ele, uma ameaça à sua liberdade e à sua própria existência. Mas era tão frágil, tão inocente e tão trêfega a avezinha. Dava pequenos pulos para deslocar a sua magreza e o seu bico diminuto explorava o solo com experiência e rapidez, à procura de alimento. Não sei por que lhe veio à memória o título de um livro – “Pauta para passarinho” – cuja capa é composta por um bando de pássaros agrupados sobre fios, como fossem notas musicais (claves de sol?) sobre pautas. E lhe veio um contraponto ao lirismo da lembrança: quando foi criança matava passarinhos com baladeiras, só pelo prazer de ver as aves abatidas pelo certeiro da pontaria. Nem se dava ao trabalho de apanhá-las, tanto mais de servir-se delas como alimento. Afinal, para que vieram ao mundo as avezinhas? Tentou vê-las nas copas das árvores, nalgum galho, bebendo na beira do riacho, soltas riscando o céu ou aprisionadas numa gaiola. Lembrou então da música sertaneja em que alguém furara os olhos do Assum preto, para que ele cantasse melhor. Uma malvadeza sem igual. Isso ele nunca fizera. Com o juízo já bicado pelo remorso, ouviu o alerta do bem te vi, em vôo rasante sobre sua cabeça. Ora, ora, viu o quê? Avisava ao passarinho que estava ao seu lado a sua figura ameaçadora? Ou simplesmente aumentava o seu remorso? Como fosse para apaziguá-lo, uma lavadeira, pequenina, pernalta, de passinhos rápidos e miúdos como é da sua natureza, marcou com minúsculas e quase imperceptíveis pisadas, a margem úmida do rio. A lenda lhe chegou instantânea, acompanhando a descoberta. A música a avivou: “Lava, lava, lavadeira, quem te ensinou a lavar, foi, foi, foi, foi o peixinho do mar...lá pras bandas do nordeste, lavadeira tem valor, porque lava a roupinha, a roupinha de Nosso Senhor...” Pois é, concluiu, esses pequeninos voadores foram distinguidos por Deus para uma missão especial. Afinal, o seu ofício é o deslumbramento. Têm o canto, a plumagem, o vôo...são simpaticamente buliçosos, graciosos, e tão à vontade no espaço que até parecem inquilinos do céu. Como se estivesse despertando de um desvario, correu até a arapuca e a desmanchou, jogando-a no rio. Pôs as mãos nos bolsos e margeou o riacho, pés descalços chapinhando na água, assobiando uma toada bem antiga da infância. Ali perto uma sabiá lhe saudou e ele lhe respondeu com uma imitação bem grosseira do canto da ave. A tarde se pôs na armadilha da noite.
Amigo Pedro, desculpe a falta de modéstia, mas você fez esse poema especial para mim. Fotografei pensando nele sem ao menos conhecê-lo. rsrsr
.....e o texto casou-se com a ilustração e a poesia se fez...
ResponderExcluirSimplesmente BELO!
Uma abraço, Gibson
Lucia