À MESTRA
DORINHA PARTEIRA, COM CARINHO
Por
Gibson Machado
Maria das Dores de Carvalho nasceu em 22 de março de
1914, numa linda aurora de domingo, pelas 6 horas da manhã. Os primeiros raios
de sol clareavam o dia e eram acompanhados pelos sons matinais dos alegres
passarinhos na saudosa fazenda Iandú, propriedade de seu avô Antonio Agostinho.
Os pais de Dorinha se conheceram na comunidade de Capela.
Sua mãe, Maria Bernardina de Lima, morava na localidade de Madeira Nova, ali
perto, e lá, conheceu seu companheiro Manoel Antonio de Lima e algum tempo
depois eles se casaram. Deste casamento tiveram dez filhos, porém, as
constantes aventuras do companheiro abalou a estrutura da família e eles se
separaram. Dona Bernardina, com seus filhos, tocou a vida com a ajuda dos
parentes.
Dorinha, muito criança, vivia com os avós e com os tios,
algumas vezes na comunidade de Varzea de Dentro, outras em Manguari, com seu
tio Papanta. Seu avô Antonio Agostinho era proprietário de um engenho de
almanjarra em Capela e possuía em torno de oito fazendas e muitas cabeças de
gado. Era homem abastado e de barriga cheia, como costumavam dizer naquele
tempo.
Sua infância foi entre Iandú, Manguari e Várzea de
Dentro. As viagens para a fazenda Iandú se davam no período do veraneio, quando
o velho Agostinho transferia seu gado para aquela região. Era um período de
muita alegria, em que as crianças se divertiam muito na fazenda através de
inesquecíveis brincadeiras de roda, tica, cabra cega, pedras e passa anel. Um
tempo de inocência e muita diversão.
Quando estava em Várzea de Dentro, na casa de uma tia,
passeava muito na cidade de Ceará-Mirim e, na fazenda, frequentava as festas
que a família promovia. Naquela época, a zona rural era encantada pelas noites
dos lindos pastoris. Havia muitas festas de Pastoril e Boi de Reis. Ficava maravilhada quando se vestia de
pastora com seu lindo vestido vermelho e conduzia as belas pastorinhas com seu
encanto de contramestra, ainda recorda com emoção as belas canções em louvor ao
menino Jesus: “Boa noite a todos, a minha chegada, sou a contramestra e viva a
sua entrada...”!
O período que passou no interior recorda com muito
carinho de como era a vida junto aos amigos e parentes. Os dias e noites em que
faziam farinhadas, com suas cantorias e aquele monte de mulheres raspando a
mandioca. Uma roda muito grande sendo movimentada por dois homens e sua mãe
Bernardina trabalhando como “sevadeira”, cuja função era abastecer o rolo para
que pudesse moer a mandioca que era raspada pelas mulheres. O cheiro da farinha
torrada, do beiju, uma verdadeira viagem ao passado. A fabricação do queijo,
aquela farofa de qualho para o requeijão, como tinha fartura àquele lugar
distante.
Sua
vida no interior não era somente viagens e brincadeiras, era também,
conhecimento. Suas primeiras aulas foram na escola da comunidade de Capela. Uma
escola muito rígida, cujas professoras, as irmãs Quininha e Janoca, faziam
valer a fama de rigorosas, principalmente, quando fazia o tão temido argumento.
Pela manhã as crianças estudavam a Carta do ABC ou a tabuada. O argumento era
realizado uma vez por semana, no período da tarde. Tratava-se do exame oral com
a turma. A criança que não respondia corretamente era punida com bolos de
palmatória. Um tempo em se aprendia com a tabuada cantada. Assim, as crianças
passavam pelo processo de ensino-aprendizagem, no fio da navalha, escapando e
caindo no rigor da palmatória. Dorinha, como sempre foi uma criança ativa e
inteligente, nunca precisou passar pela experiência da palmatória, pelo
contrário, bateu em muitos de seus colegas, por ser uma aluna exemplar e
estudiosa. Estudou até o quinto ano com muito sacrifício, porque, morava em Várzea
de Dentro e se deslocava a pé até a comunidade de Capela.
Seu
desempenho na escola contribuiu para que ajudasse as crianças de seu povoado a
se alfabetizar. Muitas tinham dificuldades de aprendizagem e seus pais
procuravam a menina Dorinha para ajuda-los. Essa experiência como professora
lhe rendeu o convite para ensinar na comunidade de Nazaré, distrito de João
Câmara, antiga Baixa Verde.
Em
Nazaré trabalhou alguns anos. Morava com um tio e se deslocava para sua casa
nos finais de semana. Tomava o trem em João Câmara e desembarcava na pequena
estação de Itapassaroca, um pouco distante de sua Várzea de Dentro. Não
importava o sacrifício, pois, nessa época, tinha um namorado e o mesmo aguardava
ansiosamente a sua chegada. Era um grande romance e uma ansiedade recompensada
pelo reencontro semanal. Um belo dia, voltando de Nazaré, resolveu casar de
surpresa, nunca mais voltando aos pupilos para lecionar.
Decorria
o ano de 1934 quando resolveu casar com Agenor Duarte de Carvalho, ele era da
família de Virgílio Luiz e morava em Ceará-Mirim. O destino da menina estava
traçado de forma diferente, e, dois anos depois do casamento, seu esposo veio a
falecer deixando sua amada grávida. A gravidez não foi tranquila e a criança
morreu antes de ver a luz da vida.
Agora
viúva, Dorinha passava o tempo costurando e fazendo alguns trabalhos na cidade
de Ceará-Mirim. Uma amiga a convidou para trabalhar com corte e costura na
cidade de Natal. Marcaram o dia para a entrevista e apresentação, no entanto,
mais uma vez, o seu destino foi traçado
de forma diferente, ela não compareceu à entrevista e perdeu o emprego de
costureira.
Continuou
sua vida fazendo os trabalhos com costura em Ceará-Mirim, até receber um
convite para trabalhar como enfermeira no Hospital Miguel Couto, na cidade de
Natal. Era um grande desafio, pois, não tinha nenhuma experiência com a nova
profissão. Determinada como era, aceitou o convite, uma vez que achava muito
bonito o trabalho como enfermeira, principalmente por cuidar dos mais
indigentes e ajudar a salvar vidas.
Os
primeiros dias como aprendiz de enfermagem foi surpreendente, seu
desenvolvimento foi muito rápido, tanto, que depois da primeira aula sobre
aplicação de injeções, colocou em prática sua aula, fazendo seis aplicações
intramusculares. Estava apta para enfrentar aquela nova missão.
O
hospital era coordenado pelas freiras e, as mesmas, eram subordinadas à madre
superiora. Elas faziam todo o gerenciamento e supervisão das enfermeiras. O
trabalho era de muita responsabilidade, pois, de madrugada começava a fazer a
triagem dos pacientes e a troca dos curativos e, durante o dia, auxiliava a
equipe médica como instrumentista no Centro de Cirurgia. Aprendeu muito com as
situações de emergência no Hospital, principalmente por ter como médicos os
doutores Onofre Lopes, Aderbal e Etelvino, profissionais de alta categoria,
homens predestinados a salvar vidas.
Foram
mais de três anos de experiência como enfermeira no Hospital Miguel Couto. Deixou
aquele trabalho porque teve um aborrecimento com uma das freiras e resolveu que
não deveria mais prestar seus serviços àquela instituição. A madre superior
tentou convencê-la em ficar, mas, já tinha decidido partir e enfrentar um novo
caminho.
Quando
deixou o hospital, voltou para Ceará-Mirim e continuou fazendo alguns trabalhos
com corte e costura. Foi em um desses trabalhos que conheceu a família de seu
segundo esposo, Manoel de Araujo Sá. Era viúva e não queria mais casar, no
entanto, a mãe e irmã do rapaz, depois de muita insistência, a convenceram
realizar seu segundo matrimônio e, deste, nasceram Julvatene, Antonio, Canindé,
Maria das Graças e José Wilson.
Nos
idos de 1940, mas ou menos no ano de 1944, estava em sua residência quando
recebeu um chamado de urgência para fazer um parto. Não pensou duas vezes,
acompanhou o cliente, um senhor conhecido na cidade por Joaquim do Ouro, e foi
enfrentar mais aquela batalha. Era o primeiro parto que realizava fora do
hospital e sem acompanhamento médico. Ficou muito admirada e receosa quando
encontrou a parturiente, estava sofrendo e para sua surpresa, eram duas
crianças. Iniciou o trabalho de parto e solicitou que fossem chamar o médico
para avaliar a paciente.
Naquela
época, Ceará-Mirim não tinha hospital e estava sendo instalado aqui uma unidade
do SESP e o médico responsável pela cidade era Dr. Percílio Alves, um dos
grandes profissionais que conheceu. Dr. Percilio atendeu prontamente o chamado
e quando chegou o parto estava chegando ao fim, ele avaliou os procedimentos e
mandou que continuasse porque estava tudo normal. A partir daquele dia foi
autorizada a continuar prestando seus serviços como parteira.
A
nova profissão estava encaminhada e a cidade precisava de profissionais que
fizessem esse serviço. Naquela época havia muitas dificuldades, principalmente
com relação ao sistema de transporte, pois o deslocamento era feito através de
animais, carroças, a pé e até nos troles pela linha do trem. Muitas vezes para
chegar ao destino e não colocar a vida das pacientes em risco atravessava rios
cheios, principalmente no tempo do inverno quando enfrentava relâmpagos,
trovões, verdadeiras tempestades para ajudar as crianças que estavam prestes a
nascerem.
Durante
o período em que exerceu a função de parteira, construiu uma grande e sólida
amizade com seus pacientes, pois, além de fazer o parto, dava assistência no
período conhecido, naquela época, como resguardo. Só deixava de visitar suas
pacientes quando estava liberada para suas atividades. Muitas vezes não recebia
pelos seus serviços, pois parte da população não tinha condições de pagar pelo
trabalho. Algumas vezes o pagamento era feito com alimentação e isso ajudava
muito à sua dispensa, uma vez que sua residência se transformava em maternidade
quando as pacientes eram da zona rural e não tinham para onde ir. Nessas
ocasiões ela liberava seu quarto para a realização do parto e dormia com os
filhos em outro cômodo da casa até que a mãe saísse do resguardo.
Trabalhou
como parteira até o ano de 1977. Foram trinta e poucos anos prestando
assistência às gravidas de Ceará-Mirim. Muitas crianças vieram ao mundo auxiliado
pelas suas divinas mãos. Fazia uma média de três a cinco partos por dia. As
gerações de 1940, 50 e 60, certamente, sua grande maioria, nasceu pelas mãos de
Mãe Dorinha. Foram mais de 40 mil crianças vindas ao mundo pelas suas mãos.
Praticamente todas as famílias de Ceará-Mirim, sejam urbanas ou rurais, tiveram
o auxilio de nossa querida mestra parteira.
No
ano de 1977, necessitando passar por um procedimento cirúrgico, conversou com
os filhos e resolveram que deveria fazer o tratamento na cidade do Rio de
Janeiro, além de ter uma medicina mais avançada, seus filhos estavam morando
naquela cidade.
Viajou
para o Rio de Janeiro e depois de fazer o tratamento, decidiu que ficaria,
definitivamente, com os filhos. Lá, na cidade maravilhosa, passou a frequentar
a Igreja da Santíssima Trindade, localizado na comunidade de Nilópolis, onde
morava com os familiares.
Os
anos se passaram e seu envolvimento com a igreja ficava cada dia mais forte.
Inicialmente frequentava as missas, porem, logo acompanhou as atividades
sociais realizadas pelas pastorais. Muitos anos teve como obra social, recolher
alimentos para distribuir com os mais carentes da região. Além disso, visitava
diariamente os indigentes e doentes que precisavam de orações e conforto
espiritual. Sua missão no Rio de Janeiro foi ajudar o irmão mais necessitado.
Frequentava o abrigo para levar mensagens de paz e conforto para os irmãos
velhinhos, muitas vezes esquecidos pelos familiares.
Foi
fervorosa lutadora pelas obras de restauração da igreja da santíssima Trindade,
organizava bingos, almoços e festas a fim de angariar recursos e finalizar as
obras. Seu trabalho e empenho foram reconhecidos pela comunidade quando decidiu
voltar à sua terra natal. Os irmãos em Cristo a homenagearam com uma grande
festa de despedida.
Em
2006 voltou à sua terra natal continuando a frequentar a igreja e participando
das atividades sociais existentes na cidade. Participa ativamente do grupo Vida
Nova em encontros e viagens. Recentemente foi homenageada pela Prefeitura de
Ceará-Mirim e pela Funasa com menção honrosa pelos serviços prestados a
Ceará-Mirim e Rio Grande do Norte.
Em
22 de março de 2014 a família da mestra em parceria com os membros do Projeto
Vida Nova e amigos realizaram uma grande homenagem pelo seu centenário. A
programação iniciou com missa em ação de graça celebrada pelo sacerdote Bianor
Júnior, o qual fez uma leitura de sua trajetória de vida. A missa foi na Matriz
de Nossa Senhora da Conceição, onde, parentes e amigos puderam celebrar juntos
essa data tão marcantes na vida de todos, inclusive, contou com a presença de
dois sacerdotes da igreja em que serviu voluntariamente no Rio de Janeiro. Na
oportunidade, também, foi homenageada sua irmã Vina, que veio do Rio de Janeiro
para, juntas, celebrarem este momento de muita felicidade, pois ambas nasceram no
mesmo mês, Ela fazendo cem anos e a irmã, noventa.
A recepção
foi no salão do Rotary Clube, tudo estava bem organizado e a ornamentação
impecável. Não é frequente ver na cidade o encontro de grandes artistas, mestres
da música, como os irmãos Tita e Damião, o musicista Fernando Campos e o
saxofonista, filho da aniversariante, Caninde, conhecido carinhosamente por Craúna.
Além destes, apresentaram-se, também, a nova geração de artistas, um grupo de
pagode, que animou a festa por toda tarde.
A aniversariante
estava radiante de alegria, primeiro, por juntar os familiares em
confraternização, segundo, rever a família distante, do Rio de Janeiro, sua
irmã Vina, ponto de apoio nos momentos delicados no passado, e, finalmente, ver
a alegria dos amigos, a presença do médico Murilo Barros, parceiro em muitos de
seus partos realizados quando seu ofício era ajudar as criancinhas virem ao
mundo e, como é seu jeito de ser e de viver, convidou o amigo Ciro Pedrosa para
seu parceiro na hora da valsa, já que é ouvinte de seu Café da Manhã e não
poderia deixar de compartilhar aquele momento de contentamento com um amigo que todos os dias
entra em sua casa para deixa-la informada do cotidiano de sua cidade natal.
VIVA
MESTRA DORINHA PARTEIRA!!!
Minha família tem o privilégio de conhecer pessoa tão ilustre como Dorinha " parteira", como é conhecida. Que Deus conceda muita saúde e paz. E a presença do Altíssimo seja com ela por todos os seus anos aqui na terra. Te amamos. Lilian e Sérgio Fernandes.
ResponderExcluirQue história bonita!
ResponderExcluirO Sr. Joaquim do Ouro, era meu avô já falecido. Já a parturiente era a minha avó Maria das Dores também falecida.
Andréa - RJ
Gente é minha tia avó! Eu fui ver uma das filhas dela! Foi muita emoção!
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