Observar o desenvolvimento de
Ceará-Mirim e analisar sua história atual, as explosões urbana e demográfica,
seus conflitos internos, a decadência de sua economia, não tem como deixar de
refletir sobre “O Velho Engenho”, crônica do grande mestre Edgar Barbosa em seu
“Imagens do Tempo”, 1966.
A memória da cidade está sendo
consumida, metaforicamente, pela fuligem da cana, levada na ventania do amanhã
e tragada pelo crepúsculo do crescimento. No futuro próximo, bem próximo,
quando buscarmos encontrar as raízes da gente baquipeana, perceberemos que amanheceu cinza e a manhã da criação será apenas
uma lembrança e, apesar de verde – se ainda houver verde – a aquarela acabou!
A manhã da criação terá evaporado
com a neblina do vale!!!
VELHO ENGENHO
Edgar Barbosa - Imagens do Tempo
- 1966
Dentro do nevoeiro do vale mal se
entrevem os despojos do velho engenho morto. A casa está em ruínas e uma erva
hostil cresce, silenciosa, por toda a bagaceira, invadiu os alpendres e
assenhoreou-se do chão onde nunca mais pisou o pé humano.
Que fim levaram os antigos
moradores? Onde os meninos trêfegos, os mestres, os cambiteiros, os animais e
as aves que alertavam as madrugadas?
Tudo parece morto, não há sinal
de vida dentro do grande vale onde outrora ecoavam os rumores do trabalho e as
alegrias das safras exuberantes. Os próprios caminhos estão ocultos ou se
tornaram sendas misteriosas de um mundo perdido. As chuvas os transformaram em
barrancos, as formigas, às suas margens, construíram sossegadamente o seu
reino. E à noite, sob as estrelas, as corujas desferem o seu canto soturno e
imprimem ao velho engenho um aspecto de câmara ardente.
Entretanto, a terra, em redor,
clama por que a fecundem. As árvores, embora maltratadas e esquecidas, guardam no
porte a majestade dos dias que foram belas. Coroando o outeiro, como um penacho
real, ergue-se um pau d’arco de cem anos, que ainda floresce como no tempo de
jovem. E tudo isso paira, ali, no exílio, como se fosse um continente ignorado,
lembrando a terra depois do dilúvio.
Eis um crime para o qual não há
pena. Esse êxodo de ingratos e de emasculados, que arrancaram suas próprias
raízes para ir vegetar adiante, como parasitas, mereciam um castigo. Eles, os
senhores, meninos que se tornaram velhos, perderam-se nas ruas, passeiam
displicentemente pelo asfalto das cidades, entretêm-se com as músicas e os
cinemas, dançam e cantam nos clubes. A sua vida parece a dos presidiários que
se consolam com o simples passar dos dias e das noites. A diferença é que esses
fugitivos, sem alma nunca têm remorsos.
O velho engenho lá ficou,
desmanchando-se pedra por pedra. Os maquinismos foram vendidos ou enferrujam,
na sepultura das moitas, enquanto a erva cresce, silenciosa, afogando os
alpendres, cobrindo como um sudário implacável, a bagaceira morta.
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