sexta-feira, 28 de março de 2014

CRÔNICA DO VELHO ENGENHO


Observar o desenvolvimento de Ceará-Mirim e analisar sua história atual, as explosões urbana e demográfica, seus conflitos internos, a decadência de sua economia, não tem como deixar de refletir sobre “O Velho Engenho”, crônica do grande mestre Edgar Barbosa em seu “Imagens do Tempo”, 1966.

A memória da cidade está sendo consumida, metaforicamente, pela fuligem da cana, levada na ventania do amanhã e tragada pelo crepúsculo do crescimento. No futuro próximo, bem próximo, quando buscarmos encontrar as raízes da gente baquipeana, perceberemos que  amanheceu cinza e a manhã da criação será apenas uma lembrança e, apesar de verde – se ainda houver verde – a aquarela acabou!

A manhã da criação terá evaporado com a neblina do vale!!!

VELHO ENGENHO
Edgar Barbosa - Imagens do Tempo - 1966

Dentro do nevoeiro do vale mal se entrevem os despojos do velho engenho morto. A casa está em ruínas e uma erva hostil cresce, silenciosa, por toda a bagaceira, invadiu os alpendres e assenhoreou-se do chão onde nunca mais pisou o pé humano.


Que fim levaram os antigos moradores? Onde os meninos trêfegos, os mestres, os cambiteiros, os animais e as aves que alertavam as madrugadas?

Tudo parece morto, não há sinal de vida dentro do grande vale onde outrora ecoavam os rumores do trabalho e as alegrias das safras exuberantes. Os próprios caminhos estão ocultos ou se tornaram sendas misteriosas de um mundo perdido. As chuvas os transformaram em barrancos, as formigas, às suas margens, construíram sossegadamente o seu reino. E à noite, sob as estrelas, as corujas desferem o seu canto soturno e imprimem ao velho engenho um aspecto de câmara ardente.

Entretanto, a terra, em redor, clama por que a fecundem. As árvores, embora maltratadas e esquecidas, guardam no porte a majestade dos dias que foram belas. Coroando o outeiro, como um penacho real, ergue-se um pau d’arco de cem anos, que ainda floresce como no tempo de jovem. E tudo isso paira, ali, no exílio, como se fosse um continente ignorado, lembrando a terra depois do dilúvio.

Eis um crime para o qual não há pena. Esse êxodo de ingratos e de emasculados, que arrancaram suas próprias raízes para ir vegetar adiante, como parasitas, mereciam um castigo. Eles, os senhores, meninos que se tornaram velhos, perderam-se nas ruas, passeiam displicentemente pelo asfalto das cidades, entretêm-se com as músicas e os cinemas, dançam e cantam nos clubes. A sua vida parece a dos presidiários que se consolam com o simples passar dos dias e das noites. A diferença é que esses fugitivos, sem alma nunca têm remorsos.

O velho engenho lá ficou, desmanchando-se pedra por pedra. Os maquinismos foram vendidos ou enferrujam, na sepultura das moitas, enquanto a erva cresce, silenciosa, afogando os alpendres, cobrindo como um sudário implacável, a bagaceira morta.





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