Ah, essa cana...
Eu me vi, ainda menino, sem o que fazer de útil para a sociedade em determinado momento do dia, olhando para o quintal, procurando me decidir entre subir no pé de cajá, no de goiaba, no de manga ou pegar o facão amolado e cortar e descascar cana, acabando por optar por esta última atividade.
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Aquilo era quase um ritual litúrgico! Abrir a gaveta da mesa da varanda, desembainhar a peixeira do tempo de meu pai e selecionar naquela touceira o melhor caule da planta do gênero Saccharum, tão estreitamente vinculada com a História do Brasil. Com um golpe só, decepava a bicha no talo. Os pés de cana do nosso quintal eram grossos feito bambus. Diziam que não eram tão doces quanto a cana caiana, aquela que quando madura ficava amarelinha e era fina feito as canelas de minha irmã. Digo isso me referindo às canelas dela naquele tempo. Hoje, não lembram mais cana. Estão mais para tronco de peroba-do-campo ( se ela ler isso, me arranca o couro...).
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Independente da grossura do caule da nossa cana, ela era tão docinha...
Uma vez cortada, eu me dedicava a limpar, cortar os olhinhos, seccionar a parte das folhas afiadas feito navalha. Uma vez limpinha, eu cuidava de cortá-la em pedaços menores para facilitar o descasque. Os anos de prática me davam extrema habilidade nesse processo. Era fazer um pequeno talho na parte alta do nó e, com um movimento da faca, um pedaço da casca grossa levantava, daí era só deslizar a lâmina e ele voava longe. Criteriosamente, eu removia todo aquele invólucro cor de vinho tinto e a carne da cana, em tom entre o amarelo claro e o verde lavado se me oferecia com languidez. O passo seguinte era cortar o nó, e isto eu fazia segurando o pedaço da cana com a mão esquerda e, com a outra mão decepando a parte indesejada com um movimento em círculo feito com a peixeira. Cortava o nó de cima, cortava o nó de baixo. Eis que eu tinha um rolete de uns dez centímetros implorando pelos meus dentes.
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Calma, ainda faltava um bocadito para o meu prazer. Apoiava a lâmina da faca em transversal no alto do rolete e batia com a mão na parte sem corte para que a faca deslizasse rompendo aquele pequeno cilindro que se dividia em duas metades. Juntava estas partes e fazia a mesma coisa, cortando em cruz. Logo, eu tinha quatro pequenos talos umedecidos pelo corte do facão. Era como uma mulher amada, molhada de desejo, pronta para ser sorvida pelo amante hábil e carinhoso. Introduzia na boca aquele pedaço de prazer, mordendo com molares e pré-molares num canto da bochecha, recebendo na língua o gozo da cana, sumo generoso, mel de prazer que me enchia a boca, excitando-me as papilas gustativas, misturando-se às minhas secreções. Eu praticamente fazia amor com aquele pedaço de vegetal.
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Para me tirar daquele enlevo, só a voz de meu irmão, quebrando o momento mágico, pedindo:
- Me dá um pedaço?
Eu cortava mais um rolete e entregava ao pidão, dizendo: “desinfeta, pirralho!” e o via realmente sumir, mordiscando o naco adocicado, cuspindo o bagaço no chão do terreiro.
Naquele momento, eu não imaginava que estava revivendo um gesto histórico, que tantos outros fizeram. Imagino quantos negros escravos, em raros momentos de descanso, também se dedicavam a sorver o caldo da cana abocanhada entre os dentes, para depois lançar longe o bagaço exangue.
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Tudo isso passou pela minha mente, num átimo, na velocidade do pensamento, quando vi os roletes de cana que o rapaz vendia na feira de uma rua de um Rio de Janeiro urbano, esquecido desses pequenos prazeres. O torvelinho da feira me engoliu e diluiu meus pensamentos, como que me chamando para a realidade. Mas eu sabia muito bem que dentro de mim o menino ainda chupava aquela cana e assoviava um chamamento para que eu me juntasse a ele...
M.S.
FONTE: http://antigasternuras.blogspot.com/2010/05/ah-essa-cana.html
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