sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O TREM DE CEARÁ-MIRIM

JORNAL DE DOMINGO – Natal, Domingo, 18 de novembro de 1984
O TREM DE CEARÁ-MIRIM
Nilo Pereira

Foto do trem na Estação de Ceará-Mirim - 1939 - autor: Julio Senna


O trem e o automóvel são duas fixações de infância. Ambos representam duas etapas do progresso que chegava. Menino de engenho, vi o carro-de-boi aposentar-se, ou arrastar-se, langoroso, por velhas estradas. Nada mais triste do que aqueles bois imponentes, murchos, cabisbaixos, que só servem para puxar o carro. Lá vão eles, solitários, como quem perdeu tudo.
A precedência histórica do trem sobre o automóvel é apenas um fato consumado; não altera no sentimento de menino a constância lírica com que os novos tempos chegam e passam ao coração humano como páginas de um romance proustiano.
O cavalo de sela nunca foi para mim uma atração. Sei bem que fazia parte da paisagem dos engenhos. O senhor-de-engenho, diz Gilberto Freyre em NORDESTE,, é um centauro: metade homem, metade cavalo. Uma outra vez fui com meu pai da “rua” (a cidade) para o Guaporé. O que verdadeiramente me encantava era a viagem de trem e, depois, a de automóvel.
Quando ouço em velhos filmes o apito de uma locomotiva, sinto que desperta o menino que anda comigo. Que nunca me deixou. Bastava ouvir o silvo para correr à janela e esperar a máquina que resfolegava e lentamente se aproximava da estação.

Locomotiva Katita - primeira a fazer o transporte entre Natal - Ceará-Mirim - Museu do Trem em Recife/PE

O aspecto é de uma baronesa. Entra imperialmente na cidade. Ou vem dos lados dos tabuleiros como uma serpente em fogo, ou dos lados da casa do general João Varella. De qualquer maneira, uma soberana. Uma salamandra que não de queima nas casas.
A noite o seu farol dá a cidade adormecida fulgurações estranhas. Há figuras espectrais que se movem como que tangidas pela feeria daquele olho luminoso.
O trem chegava de Lages, ponto terminal. Tinha razão de vir cansado, exaurido. Um jogo de lanternas dizia se ele podia aproximar-se ou não. Um outro sinal mostrava que devia entrar num desvio. Tudo isso o menino da janela ia percebendo. Mas não sabia que estava incorporando a cena à sua futura lembrança. À curtição dos tempos.
O Ceará-Mirim é uma cidade urbana. Urbana e rural. Participa de duas naturezas. Do vale recebe a inspiração poética, a luz intermitente dos seus pirilampos, uma brisa suave, intemporal, que refresca as almas. A cidade basta-se a si mesma. Mas, sendo menos viçosa do que o vale dá a impressão de ser cidade morta. Pelo menos era assim na infância. Tal como a recordou Edgar Barbosa em páginas de Antologia, como se falasse de uma Itaoca ou de Oblívion, lembrando Monteiro Lobato.
Essa cidade morta de repente criou vida. Mas, permanece intocável na saudade dos verdes anos.
Sua vida começa a agitar-se com a chegada dos primeiros automóveis, tinha de ser fatalmente um Ford de bigodes, com faróis de acetileno. Pertencente a Pedro Fernandes, comerciante.
O Ford obrigou o preto Antônio Rufino a parar a sua carroça, transportadora de açúcar. Lembro-me perfeitamente desse bom homem. Era simples e obediente como um animal doméstico. Cuido ouvi-lo tangendo os seus bois, que acudiam, solícitos, pelos nomes: Maravilha, Generoso, Boi de Cambão, Espeto.
Era o caminhão de Julio e Severino Ramalho que dava entrava triunfal, inaugurando a civilização industrial, a tecnologia, que ainda não tinha esse nome. Quando se escrever a história do Ceará-Mirim, esses dois irmãos serão lembrados pelo sei pioneirismo. Foram eles que inauguraram a luz elétrica, no Ceará-Mirim. O motor ficava à rua da Aurora. Era barulhento.Lá em baixo na rua Grande, não se podia dormir com o ronco sincopado da nova maravilha. A máquina vencia a tranquilidade, o imobilismo da cidade antiga.
Depois, veio o caminhão “Saurer”, alemão, de Joel Villar, para quem olhávamos com um grande respeito: tinha um braço cortado, que perdeu em Canudos. Era nosso herói. O nosso Bayard, sem medo e sem mácula. Quando, mais tarde, li OS SERTÕES de Euclydes da Cunha, em vão procurei o nome de Joel. Era um soldado como outro qualquer, mas a quem não faltou, decerto, o heroísmo de tantos outros. Faltava-lhe a legenda.
Mas eu falava do trem do Ceará-Mirim. As locomotivas eram alemãs ou norte-americanas. As primeiras tinham mais majestade. Eu as associaria, mais tarde, ao poderio pan-germânico. Ao Kaiser, ao Kromprinz e mesmo Nietsche. (E o grande mal do homem, a imaginação. Só não somos felizes porque somos dotados de imaginação e com ela botamos tudo a perder).
Minha primeira viagem de trem foi com o meu cunhado Francisco Fernandes Sobral, promotor público do Ceará-Mirim. Ele, todo entregue a leitura do romance de Dannuzzio – IL FUOCO – uma coqueluche das épocas. Eu, embevecido pela paisagem. O verde do vale era uma fantasia para os olhos virgens de um adolescente. As árvores correndo, desabuladas. A parada de Extremoz.A lagoa. Um mundo que nascia. E o menino crescendo com essa visão mágica.
O momento supremo era a passagem pela ponte de Igapó. Sem nenhum anúncio a locomotiva entrava., airosa, destemida, naquele corredor metálico sobre o Potengy. Os vagões se agitavam como impulsionados por um movimento Infreme. O trem mostrava sua força, o seu vigor dominando aquele desafio.
Hoje, quando vejo a velha ponte partida ao meio, abandonada, simples ferro velho, curtindo o seu ostracismo, a sensação que tenho é que mutilaram a minha infância.
Se ela ficou imprestável, merecia outro tratamento. Morreu devagar, ela se dava pressa aos trens. Que sustentava os pesos daquelas composições fantásticas capazes de varar mundos. Na ponte, desarvorada, ficou o apito nostálgico da locomotiva como uma dobre de finados.
Não posso ser indiferente a esse espetáculo. Tudo se restaura, hoje em dia. Mas a ponte de Igapó definha. O tempo se encarrega de fazer dela um repasto de ingratidão.
Por solicitação de Edgar Barbosa (quantas vezes passamos pela mesma ponte e tivemos os mesmos sustos!) escrevi uma pequena nota sobre a nossa Ponte S. Luiz. Já não sei por onde anda essa antiga página. Sei que ela conserva uma nostalgia incurável. Gerações e mais gerações passaram por ela. Duvido que ela, já velhinha, tenha perdido a memória. Não, ela se lembra de tudo, a ponte da infância, que ainda me liga à utopia, a nossa maior realidade.

Um comentário:

  1. Era para a Katita voltar para o RN. Não entendo a sua permanência em Recife.

    Até a próxima.

    José Leonardo ( Natal-RN )

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