REMINISCÊNCIAS
Texto do livro “ Oiteiro – memórias de uma sinhá moça” de Madalena Antunes Pereira
Da esquerda para a direita: Maria Antonieta (2º filha), Olympio Varela Pereira (genitor), Ruy Antunes Pereira (1º filho), Joana D'Arc Pereira (filha caçula), Maria Magdalna Antunes (Mãe), Abel Antunes (2º filho) e Vicente Ignácio (4º filho).
No outono da vida, recordar a infância é abrir pontos de luz na estrada abandonada do passado. Guardo com devoção a lembrança do meu primeiro dia de escola.
Maio! Ainda hoje o contemplo, no milagre da imaginação, no pólen de suas flores, na renovação de suas messes, sentindo em tudo a poeira das desilusões, polvilhando a trilha do passado.
Estávamos no Oiteiro. A folhinha pregada à parede da vasta sala de jantar marcava 25 de maio de 1887, dia do meu aniversário.
Eu fazia 7 anos de idade. Logo pela manhã as camponesas mimosearam-me com filhos que eu pus no altar de Nossa Senhora, improvisado no alpendre de nossa velha casa de campo, de biqueira e janelões envidraçados. Mãos piedosas adornavam de leques de palmeira e ramos verdes de estefanotes brancos, as paredes da capelinha rústica, em honra do santo mês mariano. As crianças, à hora do terço, levavam arcos de boninas enfiadas em palitos de coqueiro.
As camponesas sorriam para Nossa Senhora, e ela sorria para as camponesas.
“Feliz é o simples que sabe ser como o ar, a árvore, o rio: simples, mas simples sem saber...”
O encanto dos jardins do Oiteiro resumia-se em sua profusão de flores, porque os canteiros não tinham estética.
Eram orlados de fundos de garrafas e pedrinhas do sertão. As roseiras transbordavam de latas de querosene e os jasmineiros cresciam pujantes, beirando os velhos muros, gretados, da Casa Grande.
Pelos vidros partidos das varandas, penetravam os “mimos do céu”, delicada trepadeira de pétalas miudinhas, que alforjavam o solo, como róseas borboletas de asas despedaçadas, rolando pelo chão.
Os resedás — miosótis brancos — embalsamavam o ar, paralelos aos bogarís de folhas largas, delicadamente enrolados, quais brancos caracóis. As angélicas afloravam de varetas verdes, que se inclinavam salpicadas de estrelinhas brancas, como o cajado de São José.
Recordas-me o Oiteiro e ele a minha infância, fonte perene na qual cada um procura, vez por outra, nos momentos de desânimo, aquela paz benfazeja que a criança desperdiça, o homem ambiciona e os velhos recordam...
Atraía-me o culto às flores. Adorando-se, sentia-me feliz. Ungia-me de vibrações estranhas, extasiando-me diante do belo. Era a promessa da puberdade intelectual e humana.
Apertava as rosas ao peito, sem lhes sentir os espinhos. Mas, maltratava os cravos, lânguidos e sedosos. Talvez por não me picarem...
Trincava-se, destruindo as compridas hastes. E os pobres cravos rolavam pelo chão, alvos e crespos, como cálices sem pé, derramando odores.
No pátio de areia fofa, ao lado esquerdo de nossa velha casa de campo, crescia, um oitizeiro, que dava sombra às crianças e abrigava os xexéus de peito amarelo e “encontros” vermelhos.
Nas belas manhãs de sol, reuniam-se aos outros pássaros numa orquestração de notas maravilhosas. As grossas raízes saídas do tronco do Oitizeiro rasgavam a terra contornando as areias; cinzentas e lustrosas, pareciam velhos polvos lodosos sobre algas marinhas, espreguiçando-se ao sol.
Pelas noites enluaradas, os ramos da frondosa árvore refletiam sombras fantásticas nos muros da Casa Grande, envolvendo-a em misteriosa penumbra. Aquelas retorcidas vergônteas seculares lembravam envelhecidas formas humanas. Uma delas, qual braço estendido para frente, formava à extremidade uma garra que as escravas apontavam às crianças, asseverando ser a mão de um frade à espreita dos gurís mal criados, para estrangulá-los sem piedade.
Foi sob a sombra daquela frondosa árvore que recebi, na manhã de meus 7 anos, as felicitações e lembranças de minha família. Agradaram-me todos os mimos, menos o de meu pai, que foi uma carta de “a-b-c”.
Comparando-os aos dos anos anteriores, exclamei, indignada: Que presente horrível! E, no auge da indignação, piquei a carta de “a-b-c” em mil pedacinhos, soltando-os ao ar. Erguendo para o alto os olhos marejados de lágrimas, vi então agarrados à mão do “frade”, estilhaços de papel, que certamente o vento conduzira até alí. Estremeci de medo pensando que fora o monge que os apanhara. Horrorizada, esperei pelo castigo.
Vitoriava a superstição.
Ó velho oitizeiro! Figura do passado! Templo de minhas primeiras impressões! Tu que em criança me assombravas e hoje me inspiras respeito e saudade! Quantas coisas recordas, ó árvore do pomar de minha felicidade!
Tudo que abrigaste naquele tempo em tua dadivosa cúpula, já morreu, como já se extinguiram em mim o temor das superstições, a angústia dos mistérios e o prêmio da reprodução. Ambos estamos fanados: “Tu com o envelhecimento da nervura, eu, com o envelhecimento dos tecidos.”
A uma certa distância, meu pai observava tudo... E aproximando-se de mim:
— Que bela estréia, minha filha, para quem entra hoje, segundo a Igreja, no uso da razão!
E, afivelando-me no braço uma pulseirinha de coral, acrescentou:
— Não era somente a carta de “a-b-c”.
Perdoe-me, balbuciei envergonhada.
Ele chamou-me a si, beijando-me sem mágoa, na sublimidade do amor paternal. Repreendeu-me com brandura. Sabia que tudo quanto se diz às crianças deve ser revestido de simplicidade e leveza, para que não se rompa o fino véu que ainda as envolve, afastando-as da cruel realidade.
Que jamais se rasgue esse véu senão em mãos estranhas, talvez sem o risco de remorsos...
Meu pai! Como eu o adorava! E ao Deus que m’o deu como poderei pagar a oferta? Deveria haver uma consciência infinita para o infinito da bondade divina.
Jurei a mim mesma que daquele dia em diante procuraria corrigir o meu principal defeito: o estouvamento. E pela primeira vez chorei amargamente, sentindo no íntimo algo de estranho que me dilacerava.
Era a alma tocada pelo remorso da ação má que acabara de praticar, destruindo a carta de “a-b-c”. Era o meu Eu, desperto, para carregar aos ombros o “uso da razão”.
Assim terminou o primeiro dia de escola, à sombra acariciadora do Oitizeiro. Relembrando-me, lembro a sublime oração de Ruy Barbosa:
“Bendita seja, Senhor, a mão que tantas graças em mim tem derramado. Vós me destes progenitores imaculados que buscaram ensinar-me e não errar os vossos caminhos”.
Maio! Ainda hoje o contemplo, no milagre da imaginação, no pólen de suas flores, na renovação de suas messes, sentindo em tudo a poeira das desilusões, polvilhando a trilha do passado.
Estávamos no Oiteiro. A folhinha pregada à parede da vasta sala de jantar marcava 25 de maio de 1887, dia do meu aniversário.
Eu fazia 7 anos de idade. Logo pela manhã as camponesas mimosearam-me com filhos que eu pus no altar de Nossa Senhora, improvisado no alpendre de nossa velha casa de campo, de biqueira e janelões envidraçados. Mãos piedosas adornavam de leques de palmeira e ramos verdes de estefanotes brancos, as paredes da capelinha rústica, em honra do santo mês mariano. As crianças, à hora do terço, levavam arcos de boninas enfiadas em palitos de coqueiro.
As camponesas sorriam para Nossa Senhora, e ela sorria para as camponesas.
“Feliz é o simples que sabe ser como o ar, a árvore, o rio: simples, mas simples sem saber...”
O encanto dos jardins do Oiteiro resumia-se em sua profusão de flores, porque os canteiros não tinham estética.
Eram orlados de fundos de garrafas e pedrinhas do sertão. As roseiras transbordavam de latas de querosene e os jasmineiros cresciam pujantes, beirando os velhos muros, gretados, da Casa Grande.
Pelos vidros partidos das varandas, penetravam os “mimos do céu”, delicada trepadeira de pétalas miudinhas, que alforjavam o solo, como róseas borboletas de asas despedaçadas, rolando pelo chão.
Os resedás — miosótis brancos — embalsamavam o ar, paralelos aos bogarís de folhas largas, delicadamente enrolados, quais brancos caracóis. As angélicas afloravam de varetas verdes, que se inclinavam salpicadas de estrelinhas brancas, como o cajado de São José.
Recordas-me o Oiteiro e ele a minha infância, fonte perene na qual cada um procura, vez por outra, nos momentos de desânimo, aquela paz benfazeja que a criança desperdiça, o homem ambiciona e os velhos recordam...
Atraía-me o culto às flores. Adorando-se, sentia-me feliz. Ungia-me de vibrações estranhas, extasiando-me diante do belo. Era a promessa da puberdade intelectual e humana.
Apertava as rosas ao peito, sem lhes sentir os espinhos. Mas, maltratava os cravos, lânguidos e sedosos. Talvez por não me picarem...
Trincava-se, destruindo as compridas hastes. E os pobres cravos rolavam pelo chão, alvos e crespos, como cálices sem pé, derramando odores.
No pátio de areia fofa, ao lado esquerdo de nossa velha casa de campo, crescia, um oitizeiro, que dava sombra às crianças e abrigava os xexéus de peito amarelo e “encontros” vermelhos.
Nas belas manhãs de sol, reuniam-se aos outros pássaros numa orquestração de notas maravilhosas. As grossas raízes saídas do tronco do Oitizeiro rasgavam a terra contornando as areias; cinzentas e lustrosas, pareciam velhos polvos lodosos sobre algas marinhas, espreguiçando-se ao sol.
Pelas noites enluaradas, os ramos da frondosa árvore refletiam sombras fantásticas nos muros da Casa Grande, envolvendo-a em misteriosa penumbra. Aquelas retorcidas vergônteas seculares lembravam envelhecidas formas humanas. Uma delas, qual braço estendido para frente, formava à extremidade uma garra que as escravas apontavam às crianças, asseverando ser a mão de um frade à espreita dos gurís mal criados, para estrangulá-los sem piedade.
Foi sob a sombra daquela frondosa árvore que recebi, na manhã de meus 7 anos, as felicitações e lembranças de minha família. Agradaram-me todos os mimos, menos o de meu pai, que foi uma carta de “a-b-c”.
Comparando-os aos dos anos anteriores, exclamei, indignada: Que presente horrível! E, no auge da indignação, piquei a carta de “a-b-c” em mil pedacinhos, soltando-os ao ar. Erguendo para o alto os olhos marejados de lágrimas, vi então agarrados à mão do “frade”, estilhaços de papel, que certamente o vento conduzira até alí. Estremeci de medo pensando que fora o monge que os apanhara. Horrorizada, esperei pelo castigo.
Vitoriava a superstição.
Ó velho oitizeiro! Figura do passado! Templo de minhas primeiras impressões! Tu que em criança me assombravas e hoje me inspiras respeito e saudade! Quantas coisas recordas, ó árvore do pomar de minha felicidade!
Tudo que abrigaste naquele tempo em tua dadivosa cúpula, já morreu, como já se extinguiram em mim o temor das superstições, a angústia dos mistérios e o prêmio da reprodução. Ambos estamos fanados: “Tu com o envelhecimento da nervura, eu, com o envelhecimento dos tecidos.”
A uma certa distância, meu pai observava tudo... E aproximando-se de mim:
— Que bela estréia, minha filha, para quem entra hoje, segundo a Igreja, no uso da razão!
E, afivelando-me no braço uma pulseirinha de coral, acrescentou:
— Não era somente a carta de “a-b-c”.
Perdoe-me, balbuciei envergonhada.
Ele chamou-me a si, beijando-me sem mágoa, na sublimidade do amor paternal. Repreendeu-me com brandura. Sabia que tudo quanto se diz às crianças deve ser revestido de simplicidade e leveza, para que não se rompa o fino véu que ainda as envolve, afastando-as da cruel realidade.
Que jamais se rasgue esse véu senão em mãos estranhas, talvez sem o risco de remorsos...
Meu pai! Como eu o adorava! E ao Deus que m’o deu como poderei pagar a oferta? Deveria haver uma consciência infinita para o infinito da bondade divina.
Jurei a mim mesma que daquele dia em diante procuraria corrigir o meu principal defeito: o estouvamento. E pela primeira vez chorei amargamente, sentindo no íntimo algo de estranho que me dilacerava.
Era a alma tocada pelo remorso da ação má que acabara de praticar, destruindo a carta de “a-b-c”. Era o meu Eu, desperto, para carregar aos ombros o “uso da razão”.
Assim terminou o primeiro dia de escola, à sombra acariciadora do Oitizeiro. Relembrando-me, lembro a sublime oração de Ruy Barbosa:
“Bendita seja, Senhor, a mão que tantas graças em mim tem derramado. Vós me destes progenitores imaculados que buscaram ensinar-me e não errar os vossos caminhos”.
Literário e poético
ResponderExcluirGênero literario
ResponderExcluirGênero textual literária e poético
ResponderExcluirGênero literario
ResponderExcluir