sábado, 7 de agosto de 2010

ALTAS HORAS

ALTAS HORAS

À memória de
Maria Alves Correia;
Tia, madrinha e parteira.


RASPINHA de lua minguante; grilos trincando a friagem. Poste da esquina, abajourado de mariposas, sem dar bom vencimento ao pardume. Casaronas de escuros beirais, umas-noutras arrimadas, pareciam cochilar, enquanto o sereno brumoso punha-se orvalho, embaçando vidraças. Tirante a safadeza dos gatos rasgando o sossego dos telhados, nem viv’alma nas sombras da ruazinha quase beco.
Um vulto apressado, rente às paredes, virou a esquina. Na quarta casa, chegou-se ao vão duma janela. Batidas respeitosas soaram ladeira abaixo.
- Dona Neném?... – toque-toque – dona Neném... – toque-toque – dona Neném!...
- Quem chama?! – disse voz malacordada.
- Benedito... Ditim da Jacoca. – anunciou ainda maneiroso.
- Deus te salve, esse-menino! Em que te valho? – atendeu mais esperta.
- Zefa-minha entrou nas dores...
- Derna de?...
- Boquinha-da-noite.
- De tempo?
- Diz-que não...
Passos enchinelados trouxeram luz pras brechas da porta. Já destramelando, gritou pra dentro:
- Oh, Aleluia; te alui dorminhoca! Atiça o fogo prum cafezinho!
Rangeram as dobradiças. Lamparina mostrou setentona de alvura corada, bem-disposta, sem negar idade. Dureza do rosto e firmeza da fala não lhe escondiam a ternura. Ele sorriu uma careta encandeada.
- Bença?...
- Bençoe. Entra, senta e aguarda. Já lhe aprontam um esquenta-bofe.
- Tem precisão, não, madrinha.
- Acalma, home! Peguei teu pai, pego teu filho... Fhum!
- ...
- Quede transporte?
- Falei o jipe de Biel; não tarda, risca aí fora.
- Não carecia de tanto. Nem meia légua, daqui pra Jacoca... Bastava trazer montaria mansa.
- E minha madrinha inda se garante em riba dum cavalo?
- Ora pois!... No osso, não monto; daí que possuo todo arreamento, pra essas horas mesmo.
- Haja saúde, com a devida graça!
- Melhor deixar pro leite do menino que pra cachaça de Biel. Fhum!
Falou de mal, prepare o pau. Nisso, chegou o transporte; ringindo grilos, motor velho pigarrando. No que ele esbarrou, ela botou-se à porta. E foi dizendo, nos conformes da simpatia:
- Se apeie prum moca, compadre, enquanto me avio!
- Deixe proutra vez, minha madrinha; diacho desse carro anda mole de estancar e duro de pegar... Se tiro o pé...
Ela espiou pros faróis mortiços, como fossem o olhar do carro a confirmar tal desculpa.
- Então aguarde um pisco; já-já apronto meus troços! – recruzada a sala, embiocou na camarinha – Oh, essa-menina, vê um cafezim pra Biel!
E voltou de roupa trocada, caqueando tinidos de ferros e frascos numa bruaca de lona puída. Naquilo se dando por satisfeita, logo inquiriu mando.
- Vumbora?!
Adélia pediu abença e Ditim largou a xícara num caritó. Biel – vrum-vrum! – reatiçou o motor.
Sem mais tardar, embarcaram. Foi-se o jipinho, assim meio penso, aos traques e puns, fobicando madrugada afora...


Ceará-Mirim, março de 2008
Bartolomeu Correia de Melo
Lembro de Dona Maria Correia... Ela fez o meu parto e de outros dois irmãos meus. Quando a encontrava na rua, obrigatoriamente, pedia sua benção: "Bença Mãe Maria"!
(Gibson Machado)

Nenhum comentário:

Postar um comentário