São poucos os registros que tratam da escravidão em Ceará-Mirim. Muitos que escreveram sobre o período áureo da cana-de-açúcar, o fizeram destacando a fidalguia, o fausto... a história negra desse tempo foi esquecida pelos nossos escribas. O que temos como registros são fragmentos isolados como no livro "Oiteiro" Memória de uma SInhá Moça de Madalena Antunes Pereira, publicado em 1957. A narrativa da memorialista nos faz ter uma idéia de como foi o dia 13 de maio de 1888 no interior do engenho Oiteiro e na vizinhaça do vale.
A LIBERTAÇÃO
(...) Em 1919 perdí a minha inesquecível Patica. Não lhe faltaram, na hora extrema, os cuidados e carinhos de que era merecedora num justo tributo do arraigado amor da minha parte.
Pus-lhe nos últimos momentos a vela na mão. Também ela iluminara-me a infânica e, ao perdê-la na idade madura, sentia-me órfã pela segunda vez, visto que perdera meus pais.
Seputei-a condignamente ao lado daquele que fôra tudo na vida para mim. A minha proteção abrangeu o espôso que deixara, alquebrado e doente, o querido "carreiro", seu único amor.
Ambos só dixaram o Oiteiro por morte.
Recordo-me de episódios anteriores à Abolição. No écran dos meus oito anos ficaram gravados. Conversas que eu entendia, outras que ficavam confusas.
A Tonha vinha me contar: "Sinhá Lica", os nêgos está dizendo na cozinha que vai tudo se libertá. Cada quá vai pra onde quizé... A Emilia dixe que vai pro Pará... Minha avó Tetê já dançou na cozinha, dizendo que vai pro sertão e me carrega! E encostando o rostinho no meu: Mas eu não vou, não, fico brincando com você, não é?...
Sentindo um apêrto no coração, dizia-lhe, então:
— Tonha, não vá, não. Eu lhe dou aquêle vistidinho de bolinhas azuis...
Indagava constrangida: Patica também vai?
Ela estalava a língua: Quá! Dixe que não deixa Sinhá Moça, nunca... As nêgas da cozinha manga dela...
Os rumores cresciam, avolumando-se, como as águas de uma enchente. Dos recantos do país chegavam notícias assustadoras para os escravocratas.
Os negros mostrava-se nas senzalas vizinhas com semblantes alegres, refletindo o que confusamente ouviam pelos cafés, no mercado da cidade, nas "vendas", e espreitavam à surdina o interior das casas dos senhores. Repetiam decorados trechos dos jornais e panfletos espalhados pela cidade. Falavam de homens chamados José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e principalmente um poeta, Castro Alves, todos falando e escrevendo a favor dos escravos!
Tonha chegava, esbaforida, da feira dos sábados, e desabafava:
— Sinhá Lica, é verdade, mesmo... Eu ouví se dizê no mercado, que um tá de Joaquim Quimbuco é o mais danado de tôdo a favô dos nêgo.
A criolinha agitava-se de um lado a outro, demonstrando, sem o saber, o frêmito da raça. Mas, ao mesmo tempo estava tristonha, porque ia me deixar... Anseios de libertação?
Liberdade! Nunca fôra cativa, apenas era filha e neta de escrava; a mãe morrera no poder de outro senhor e a avó conseguira ficar com ela complacência dos senhores.
Mas, Tonha era livre! Bem liberta de preconceitos, de tudo! Sim, bem ao contrário de mim, a eterna escrava das injunções sociais, do meio, das épocas, obrigada ainda aos mistérios de minha cosciência... Como teria de invejar, mais tarde, a independência de Tonha!
Quando brincávamos de "dona de casa", ela escolhia sempre o papel de senhora, e eu ficava sendo a escrava... Então obedecia-lhe cegamente. Se não arrumava direito a sala das bonecas, ela tomava ares de nobreza, advetindo-me. "Eu não sei aonde estou que não te dou-te uns cocorotes..." E eu os receberia, se ela mos tivesse dado, passiva e conformadamente, porquanto achava tão suave o jugo da minha "Senhora Tonha"!
O 13 de Maio aproximava-se veloz. Os escravos tinham no olhar brilho estranho e nas fisionomias tonalidades benditas, olhos abertos à esperança... A liberdade é como o sol, espalhando reflexos mesmo antes de aparecer no horizonte.
Só a Patica não mudara, continuando dócil àqueles que nunca deixariam de ser senhores do seu afeto. Mostrar-se jubilosa seria melindrá-los. O amor tem as sutilezas do perfume.
Onde encontraria eu na vida inteira outra alma igual àquela que se mostrava tão triste dentro de sua nobre alegria, para não me perturbar?
Coração de princesa acorrentado às senzalas. Catres como reflexos de tronos...
Em nossa casa chegavam comadres pobres, de minha mãe, as que nunca tiveram escravos, abordando com disfarce o assunto da abolição, que a todos empolgava.
Contavam coisas incríveis dos "Senhores". Imaginavam como iria ficar a dona Dondon, que queimava as negras com o ferro de engomar em braza, quando lhe tostavam os vestidos; a dona Joaquina, que prendia o lóbulo da orelha da escrava no portal, e, depois, chamava-a de certa distância, imperiosamente, tendo a escrava que atender, senão seria pior... E a infeliz ia ao seu encontro deixando na porta o pedaço da orelha! Contavam a indignação de seu juiz de direito, quando, certa vez fugira de propriedade próxima da cidade, uma negrinha que, entrando em sua casa se lhe ajoelhou aos pés, pedindo misericórdia. Trazia o corpo chagado de surras horríveis, infligidas pela Senhora.
A espôsa do juiz, uma excelente criatura, horrorizara-se ao constatar no corpo da infeliz, feridas sêcas, algumas sangrando, ainda recentes! A cabeça era um sarapatel!...
Então, o magistrado mandou que a abrigassem em sua casa, dizendo: Quero ver quem a poderá tirar daqui!
E as mulheres bendiziam o juiz de direito de Ceará-Mirim.
Muitas destas histórias eu e Tonha escutávamos escondidas, pois minha mãe não queria que as ouvíssemos. Então, a negrinha sobressaltada conjecturava: "Sinhá Lica, eu estou com medo de nascê de novo, pedirei a mamãe comprá-la para mim...
Não me recordo propriamente do 13 de Maio e das festas ocorridas naquele dia em Ceará-Mirim. Lembro-me apenas que foram pomposas e que um cachorrinho do reino criado por uma das minhas tias fugiu aterrorizado com os foguetes e a música. Voltando ao engenho, ia ela sem os escravos e sem o cãozinho, o que me causou pena. Esta perda fixou-se mais em meu espíirito que todos os demais acontecimentos daquele dia, que deu liberdade a milhões de criaturas acorrentadas a um eterno cativeiro. Data da abolição! Quem a compartilhou jamais a esquecerá. Os senhores atônitos abriram as cancelas e por elas passaram para o campo da igualdade democrática todos os mártires da desigualdade sinistra.
As senzalas esvaziaram-se por encanto.
Tôdas? Não! Vejamos como contou uma escava o seu dia de libertação.
"Quando atravessei quase correndo pela última vez, o corredor daquele inferno, e passei pelo terreiro, já estava Zefa, sentada, de mão no queixo. Perguntei-lhe, admirada:
Então, Zefa, não vens conosco? Estamos livres! Vamos viver a vida que todos têm direito na sagrada iguladade. Já não seremos mais "coisa", somos gente. Devemos tudo isso à santa princesa Isabel! Vamos, Zefa! Vamos levantar-lhe um altar! Que santa mais santa que a filha do nosso rei Pedro II? Qual mais caridosa, dadivosa e humana? Vamos! Saiamos o mais breve possível dêste inferno!
A Zefa Mulambo, como era conhecida, não se movia... Apenas as mandíbulas trabalhavam, mascando lascas de fumo. Faltavam-lhe células de sensibilidade. O rosto perdera a expressão. O queixo fino, sem o apoio dos dentes, estirara-se, tomando a forma de um tamanco, e o pescoço mostrava a grossura das veias dilatadas pela esclerose. Gritei-lhe outra vez ao ouvido:
— Vem, Zefa! Vinga teu filho no triunfo de hoje! Vinga o filhinho que mataste ao palpitar no ventre cativo, despenhando-te do lagedo para que êle morresse e não viesse a ter a tua sorte! Vem, criatura de Deus, vinga-te do passado, cruzando livre pelas barbas dos "senhores"! Escuta os jornais de tôda parte que estão trombeteando que "a liberdade é o favo de mel fabricado na colméia da pátria".
Vamos provar deste mel dulcíssimo!
Eu estava louca, delirante de felicidade! Distribuí beijos para os que me liam as notícias dos jornais! Decorei-as tôdas.
A macróbia não se movia...
Gritei-lhe novamente:
— E teu filho, não o vingas? Já esqueceste a tragédia?
Ao escutar a palavra – filho, estremeceu... levantou a cabeça, fitando-me apalermada:
— Ah! Sim, a criança que morreu da queda?
— Sim, repondí calorosamente, teu filho, lembras-te?
Os olhos então fuzilaram-lhe, as sobrancelhas se lhe eriçaram como asas esburacadas de um corvo ferido, tentando em vão alçar vôo... Os glóbulos avermelhados pareciam prejetar-se fora das órbitas.
A velhice é estanque de lágrimas, como a vergôntea sêca que não tem seiva. Todavia a palavra – filho - qual centelha inapagada do coração de mãe, fê-la, inesperadamente, estremecer, se bem nela tudo houvesse morrido ao gêlo dos 60 anos de cativeiro!...
— Vamo-nos embora, Zefa! Ainda insisti na derradeira solicitação...
Olhou-me aparvalhada, e resmungou:
— Não! Eu fico aqui mesmo, já me acostumei..."
Princesa Isabel! Glória de uma pátria! Mulher divina redimindo uma raça! Santa que deveria estar nos altares!
Escravidão... Lei iníqua, porém, lei...
Conselho tutelar da Criança e do Adolescente de Ceará – Mirim. Convida a todos para participar do 2º Encontro de Prevenção e combate a exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, do dia 18 à 31 de Maio de 2010.
ResponderExcluirProgramação
18 / 05 / 2010
07h: 30 m–Carreata com Buzinaço saindo defronte a Igreja Universal do Reino de Deus.
08h: 30m – Blitz em Pontos estratégicos da Cidade. Com Panfletagem e adesivagem de carros
10h00min – Entrevista do Promotor de Justiça, Exmº. Srº. Ivanaldo Soares da Silva Junior, a rádio 87,9 Fm.
15h30min – Passeata contra exploração sexual, envolvendo as Instituições saindo defronte a Escola Celso Cicco.
16h30min – Encerramento do Evento defronte a Igreja Matriz com a Benção do Pároco Municipal e apresentação teatral.
19 / 05 / 2010 a 28 / 05 / 2010
Palestras nas Instituições parceiras – Definidas pelas Instituições.
31 / 05 / 2010
Reunião com donos de bares, hotéis, Motéis, Pousadas, restaurantes e outros estabelecimentos.
Parabéns pela recordação desse trecho de tão forte expressividade. Mostra-nos o quão mal foi a escravidão para as mentes desses seres humanos, como pássaros que tempos dentro de gaiolas, acostumam-se a não voar. Como vc fala no início, nossa literatura, enaltece por exorbitante nossa fidalguia e as festas nos sobrados, mas poucos, nem juízes, oficiais ou políticos, ousaram em escrever ou pelo menos documentar essa fase negra que enriqueceu-os.
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